terça-feira, 7 de maio de 2013

O Rio Oculto



~ I ~


Um dia - uma tarde - flagrei distraída a curva de um rio. Antes disso eu passeara pelo entorno - e era casa, café na varanda e chão de terra batida, e era terra arada, revolvida e aberta, e eram ferramentas abandonadas, era fruto maduro pendurado no galho, pássaros - o entorno formava a massa viva que adiava o encontro entre mim e o rio.

E o rio, o rio oculto.

Penetrei no bambuzal viçoso e ainda não era o rio: era antes um raio de sol, e meu olhar seguiu a luz. O céu era o verde das copas, a seta de luz era quase translúcida, frágil mas concisa, enfática: apontava-me, e ao rio. Meus olhos deslizaram.

Ele era ao mesmo tempo miúdo e vasto. Seu corpo era espesso, pardo, as águas corriam oblíquas, furtivas, discretas. Água mansa, o rio bicho. Rio fêmea. Ele estava ali sob os meus olhos mas também era longínquo e não elaborável.

Parecia que dele eu só poderia apreender o hálito - e isso já seria tanto!

O rio propagava-se até mim diretamente; entre nossos corpos não havia molécula alguma, e na minha boca eu sentia seu gosto de sangue, no meu corpo fluía sua água antiga de ervas maceradas, e sorvíamo-nos no âmago da massa viva, imóveis.


No outro dia -
e era "dia"
era "sábado"
era "sol"
- e nunca seria o rio.




~ II ~


O dia chamou e vai sendo construído


tijolo (pardais, latidos, rosa estampada na xícara)
sobre tijolo (motores, buzinas, vozes, engrenagens funcionando)
sobre tijolo (embalagens, rótulos, códigos de barra, inscrições engastadas nos talheres)
...


O que mantém o muro ensolarado ereto é a argamassa:

um rio que se move entre bambuzais.





~ III ~

 

Lá no íntimo das águas, origem dos pântanos que elaboram a hulha do mundo, lá eu desfiz minhas ruas asfaltadas.

Ruíram arquiteturas suntuosas. Estratificações passaram de camadas definidas a plasma viscoso.

No ar, poeira - minerais pulverizados, expulsos de sua estabilidade anterior.

De volta, agora caminho sobre entulhos: ruas atapetadas por seixos

transplantados do rio.





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